O Bom e Sagrado Caminho Vermelho

Em nossa caminhada, levando a cura através da medicina da Arte Xamânica a muitos irmãos e irmãs, recebemos inúmeras bênçãos, sejam por palavras, gestos, sorrisos, alegrias, descobertas e a amizade que vamos fortalecendo com cada um que vem compartilhar conosco esta sagrada medicina.

Assim, através da beleza da entrega e do amor incondicional, o Grande Espírito coloca em nosso caminho as bênçãos de receber e compartilhar informações verdadeiras e embasadas no profundo conhecimento das culturas ancestrais espalhadas pelo mundo e pelo tempo, que compartilhamos com todos aqui neste espaço sagrado, por saber que o "Tempo das Nuvens Negras" chegou ao fim e a luz da informação e do conhecimento nativo verdadeiro deve ser transmitido com urgência a todos os buscadores da luz.

Como diz Hotashugmanitu Tanka: "estamos aqui para semear e compartilhar, fazendo brilhar a Roda do Arco Íris neste início do Tempo do Búfalo Branco, trazendo a consciência da totalidade, a paz e a serenidade para os irmãos de todas as cores".

Que assim seja!

Marcelo Caiuã e Bianca Martins


6 - Hunkapi: O Parentesco


HUNKAPI: O PARENTESCO


No ritual do parentesco —hunkapi— estabelecemos um vínculo que reflete no plano terreno o parentesco real que nunca deixou de existir entre o homem e o Grande Espírito. Visto amarmos a Wakan Tanka em primeiro lugar, e mais que a nenhuma outra coisa, devemos amar também a nosso próximo e reforçar os laços que podem nos unir, ainda no caso em que pertençam a outras tribos. Realizando este ritual que vou descrever, e assistindo a ele, cumprimos a vontade do Grande Espírito, pois este é um dos sete rituais que, na origem, a Mulher Bisão nos prometeu. Outras tribos dizem que este ritual teve sua origem nelas, mas não é assim, visto que foi o lakota Mato-Hokshila - Jovem Urso - um homem muito santo, foi quem recebeu este rito, em uma visão, de parte do Grande Espírito. Devem saber que a planta sagrada, o milho, não provém do país dos Sioux; mas Jovem Urso a viu em uma visão e, mais tarde, estando em viajem, encontrou um pequeno campo de milho, exatamente parecido ao que havia visto em sua visão; e levou este milho a seu povo, sem saber que era propriedade da tribo dos arikara1, com a qual os sioux estavam em guerra há muito tempo. Agora bem, o milho era tão sagrado para os arikara como o Chanumpa para nosso
povo; por isto, pouco depois de que seu milho desapareceu, os arikara enviaram mensageiros ao acampamento dos sioux com muitos presentes e muito tabaco trançado do que eles fazem e que nós apreciamos enormemente; e pediram que lhes devolvesse seu milho.Os sioux aceitaram a proposta de paz; e Jovem Urso, que compreendeu então o sentido de sua visão, a explicou a seu povo e disse que, mediante o ritual que dele resultava, os sioux deviam estabelecer um parentesco perpétuo com os arikara, uma paz que duraria até o fim dos tempos e que seria um exemplo para as demais tribos. Todo o mundo aceitou com alegria, e os sioux conferiram a Jovem Urso autoridade e poder para fazer a paz com ajuda do ritual hunkapi, o parentesco. Jovem Urso explicou então que sempre que se realizava este rito, quem desejava
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1 Os arikara pertencem à família lingüística dos caddo; são, por tanto, parentes próximos dos pawnies.

aparentar-se com alguém seria considerado como um arikara, e que seria ele quem deveria cantar sobre o outro. Jovem Urso disse depois aos arikara que construíssem uma tenda ritual e escolhessem a um de seus homens para representar a toda sua tribo; ele seria quem deveria cantar sobre Jovem Urso, quem, a sua vez, representaria à tribo dos sioux. Depois de um tempo, Jovem Urso encheu seu Chanumpa, se aproximou do arikara escolhido para representar a sua tribo e, ao mesmo tempo em que lhe oferecia o Chanumpa, fez este discurso: Desejo lhes ajudar realizando este rito que me foi dado em uma visão pelo Grande Espírito para o bem de nossa tribo. É sua vontade que façamos isto. Ele, que é nosso Avô e Pai, estabeleceu um parentesco com meu povo, os sioux; nosso dever é fazer uma imagem deste parentesco entre as distintas nações. Que isto que fazemos sirva de exemplo para outros povos! Tu representas a toda a tribo dos arikara e eu represento aos sioux. Vieste aqui para fazer a paz, e nós aceitamos teu oferecimento; mas, como vês, vamos estabelecer algo mais profundo que o que nos pediu. Ao pedir a paz nos trouxe vosso tabaco, que apreciamos muito, e, do mesmo modo, nós vamos te dar o milho sagrado que vocês amam por cima de todo. Ambas as coisas são sagradas, pois provem do Grande Espírito. Ele as fez para nós! Jovem Urso ensinou então aos arikara como devia se fazer a oferenda destinada aos sioux, e enumerou tudo o que se necessitava para o ritual, a saber: uma Chanumpa, tabaco; quatro talos de milho com espigas; um talo sem espigas; um crânio de bisão; três bastões para fazer um cavalete; carne de bisão seca; pintura vermelha e azul escuro; penas grandes de águia; uma faca; erva aromática; uma bexiga seca de bisão. Quando já haviam reunido todas estas coisas, Jovem Urso pegou uma faca e escavou o solo para purificá-lo. Neste lugar consagrado foram colocadas quatro brasas, e nelas Jovem Urso queimou um pouco de erva aromática, e rezou assim:

Ó Avô Wakan Tanka, Nos vejas! Neste lugar queremos criar parentes e fazer a paz; tua vontade é que isto se cumpra. Faço fumaça com esta erva aromática que te pertence, e ela ascenderá para Ti. Em tudo quanto fazemos, Tu és o primeiro, e depois vem nossa Mãe Terra; e depois dela vêm às quatro Regiões do Universo. Ao observar este rito queremos realizar tua vontade nesta terra, e queremos estabelecer uma paz que deverá durar até o fim dos tempos. A fumaça da erva aromática estará com todas as coisas do Universo. Está bem!

Todos os objetos rituais foram então purificados na fumaça; os três bastões foram dispostos em forma de secador de carne, e o Chanumpa foi apoiado neste cavalete. Jovem Urso colocou então a bexiga de bisão frente a si, e erguendo um pouco de tabaco para o Oeste, rezou:

Ó Tu que guardas o caminho onde se põe o sol e que controlas as águas: vamos estabelecer um parentesco e uma paz sagrada. Tu tens dois dias de mistério; que o povo desfrute deles e caminhe pelo caminho da vida com passo firme! Deves ser incluído neste parentesco e nesta paz que estamos dispostos a estabelecer; ajuda-nos! Realizamos aqui, na terra, o parentesco que sempre existiu entre o Grande Espírito e seu povo. Este tabaco, a partir de agora identificado com o Poder do Oeste, foi depositado na bexiga. Devo lhes dizer que esta bexiga é tão sagrada para muitas tribos como nosso Chanumpa o é para nós, porque também ela pode conter todo o Universo.

Então se ofereceu uma pitada de tabaco ao Norte com esta reza: Tu, lugar onde mora o gigante Wazia; Tu, que controlas os ventos purificadores, deves ser colocado nesta bolsa sagrada; ajuda-nos, com teus dois dias de mistério, e ajudanos para que possamos caminhar pelo reto caminho da vida!

O Poder do Norte, identificado agora com o tabaco, foi introduzido na bolsa; depois, Jovem Urso ofereceu um pouco de tabaco ao Poder do Leste: Ó Tu, que controlas o caminho de onde sai o sol; Tu, que das o conhecimento, estás incluído nesta oferenda; ajude-nos, com teus dois dias sagrados!

Por último, depois de colocar o Poder do Leste na bexiga, Jovem Urso ofereceu uma pitada de tabaco à Região para a qual sempre nós voltamos, e rezou assim: Ó Cisne Branco; Tu, que controlas o caminho por onde caminham as gerações, há um lugar para Ti nesta bolsa sagrada; ajude-nos, com teus dois dias vermelho e azul!

Depois de colocar o Poder do Sul na bolsa ritual, Jovem Urso ofereceu uma pitada de tabaco ao Céu: Avô e Pai Wakan Tanka, que nós conheçamos este parentesco quaternário que nos ata a Ti; que empreguemos este conhecimento fazendo a paz com outra tribo. Ao estabelecer parentescos aqui na terra, sabemos que cumprimos tua vontade. Ó Wakan Tanka, Tu estás por cima de todas as coisas, mas hoje estás aqui conosco!

Depois de por o tabaco para o Grande Espírito na bolsa de mistério, Jovem Urso rezou assim: Avó Terra, escuta-me! Vamos estabelecer sobre Ti um parentesco com um povo, igual a que Tu estabeleceste conosco ao nos dar nosso Chanumpa Sagrado (2). Os bípedes, os quadrúpedes, os seres alados e tudo quanto se move sobre Ti somos teus filhos. Queremos ser, com todas as criaturas e todas as coisas, como os membros de uma só família; igual a nosso parentesco contigo, ó Mãe, também queremos fazer a paz com outro povo, e seremos parentes deles. Que caminhemos com amor e misericórdia por este caminho que é sagrado! Ó Avó e Mãe Te colocamos nesta bolsa de mistério. Ajude-nos a estabelecer um parentesco e uma paz perpetua! E deste modo a Terra foi introduzida na bolsa, que foi fechada e sobre a qual se colocaram pelos de bisão e erva aromática. Jovem Urso disse então ao representante da tribo dos arikara:
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(2) Não devemos esquecer que o bisão é como uma encarnação animal do principio Terra, cuja manifestação material é a terra visível; mas a Terra -Principio é evidentemente divina, e esta é a razão pela que a Mulher Bisão Branco veio do Céu. Terra e Céu — as regiões visíveis — tem seu protótipo eterno no Divino; estes protótipos formam uma dupla, não se confundem; mas Wakan Tanka, em sua unidade suprema, supera esta dualidade. O fato de que o Chanumpa seja trazido por um Bisão fêmea celeste significa que aquele é um dom da dupla Terra Céu: a matéria do Chanumpa indica a Terra, e a fumaça, o Céu.

Cuidarás desta bolsa, porque está cheia de mistério, e a tratará tal como estas coisas devem ser tratadas; é realmente semelhante ao Chanumpa sagrado que receberam os sioux, e fará a paz entre muitas tribos. Mas devem recordar sempre disto: nossos parentes mais próximos são nosso Avô e Pai Wakan Tanka, e nossa Avó e Mãe Terra. Com esta bolsa sagrada, vá junto aos chefes dos sioux, e com ela se estabelecerá o parentesco. Então se envolveu a bolsa com uma pele de gamo que costuraram pelos dois lados com uma correia de couro, de maneira que se podia transportar o saquinho facilmente; assim terminou o primeiro dia do ritual. No dia seguinte, no momento da saída do sol, Jovem Urso pegou seu Chanumpa e foi para a tenda do arikara. Depois de oferecer o Chanumpa para as seis Direções, fumou um pouco e depois a deu ao arikara; este disse: Hi ho! Hi ho! e abraçou o Chanumpa, fumou um pouco e a passou aos demais homens presentes na tipi. Quando todo mundo fumou o Chanumpa voltou a Jovem Urso, que o purificou e o colocou novamente em sua bolsa. Depois disto, Jovem Urso foi a sua tenda; ali esperou, junto com os demais chefes sioux e com os sábios da tribo, a chegada do arikara, que devia lhes trazer sua oferenda de acordo com as instruções que recebeu no dia anterior. Quando os sioux vieram chegar o homem dos arikara gritaram: Hi ho! Hi ho e quatro deles foram a seu encontro e o conduziram à tenda. O arikara deu a volta seguindo o movimento do sol, se parou em pé frente a Jovem Urso, que estava sentado a Oeste e colocou ante ele a bolsa das oferendas.

Jovem Urso queimou erva aromática em uma brasa e depois ergueu o saquinho de mistério sobre a fumaça. Em seguida gritou: Hi ho! Hi ho abraçou o saquinho e rezou: Avô e Pai Wakan Tanka, Nos veja! Sobre esta terra cumprimos tua vontade. Estabeleceste um parentesco conosco ao nos dar o Chanumpa, e agora fazemos extensivo este parentesco a outro povo fazendo a paz com ele depois de haver estado em guerra. Sabemos que realizamos um dos sete ritos que nos foram prometidos na origem. Que estes dois povos, graças a este rito, estejam sempre em paz e sirvam de exemplo a outras nações. Com esta oferenda minha tribo se alegrará. Este é um dia sagrado! Está bem, vamos abrir agora este saquinho de mistério, e mediante esta oferenda ficaremos vinculados a Ti e a Teus Poderes. Wakan Tanka contemple o que fazemos.

Depois de pronunciar esta reza, Jovem Urso tirou as correias da bolsa e desenrolou lentamente a pele de gamo, e quando viram a bexiga de bisão, exclamaram: Hi ye, porque todos sabiam por que esta bexiga era tão wakan - sagrada. Jovem Urso ergueu então a bexiga na fumaça das ervas aromáticas, a abraçou e repetiu sem cessar: Hi ye, e depois rezou: Seja misericordioso! Agora que veio a nós, o povo caminhará pelo caminho do mistério segurando a mão de seus filhos. Eu sou o povo (sioux), e te amo, quero ter carinho por você, e quero cuidar sempre de ti. O povo de onde vens (os arikara) deverá também te amar sempre, e saber sempre que é santa.

Depois deste discurso, Jovem Urso ofereceu a bexiga às seis Direções, e quando a abraçou e beijou sua abertura, todo o povo gritou: Hi ho! Jovem Urso se virou para o arikara e disse: Para nossa tribo esta oferenda significa que desejas a paz e estabelecer um vínculo de parentesco conosco. É por esta razão que trouxeste um objeto tão sagrado? O arikara respondeu: Sim! Desejamos ter um vínculo de parentesco com vocês, e que seja tão estreito como o parentesco entre vocês e o Grande Espírito. Esta resposta agradou aos sioux; então tiraram a bexiga de mistério para fora da tenda para que toda a tribo pudesse abraça-la e beija-lar como fez Jovem Urso. Depois a colocaram na ponta da vigésima oitava vara da tipi para mostrar que a proposta de paz dos arikara havia sido aceita, e para colocar o saquinho que continha a bexiga no lugar mais sagrado. Como já expliquei, esta vigésima oitava vara representa o Grande Espírito, porque é a vara clave que sustenta as outras vinte sete varas da tenda. Assim terminou o ritual da oferenda. Os mensageiros dos arikara regressaram a suas tipis, onde começaram os preparativos para o dia seguinte, e Jovem Urso preparou uma tenda especial para novos rituais.

A cada lado da entrada se colocaram umas peles que formavam um caminho de um comprimento de dez passos; o tapume de peles tinha uma altura de quatro pés; este é o caminho da vida, que conduz a tenda. O que entra por ele não pode se desviar do caminho, porque os tapumes o impedem; deve, então, caminhar em linha reta para o centro. No dia seguinte, quatro homens dos arikara foram escolhidos para representar a toda a tribo; com seus apetrechos rituais, se dirigiram para a tenda que Jovem Urso lhes havia preparado. Jovem Urso estava sentado a Oeste; antes de preparar o altar lhes disse: O milho que agora os sioux têm pertence na realidade aos arikara, porque eles o amam e o consideram coisa sagrada, igual ao que nós fazemos com nosso Chanumpa; porque eles também receberam seu milho do Grande Espírito através de uma visão. É vontade do Grande Espírito que tenham seu milho. Por esta razão, nós queremos, não só lhes devolver seu milho perdido, mas também estabelecer um ritual mediante o qual criaremos a paz ao mesmo tempo em que um parentesco real que será um reflexo do vínculo de parentesco existente entre nós e Wakan Tanka.

Quero produzir agora uma fumaça aromática que chegará até os céus e também até o Luzeiro da aurora, que divide o dia em escuridão e luz; chegará também até os quatro Poderes que cuidam do Universo. Esta fumaça ascenderá desde nossa Avó, a Terra. Jovem Urso colocou então erva aromática sobre as brasas e purificou na fumaça o Chanumpa, a espiga de milho, o machado e os demais objetos rituais; agora já estava
pronto para preparar o altar. Pegou o machado, o dirigiu para as seis Direções, e depois golpeou o solo a Oeste. Repetindo o mesmo movimento, golpeou o solo ao Norte e depois, da mesma maneira, ao Leste e ao Sul; depois levantou o machado para o céu e golpeou o solo duas vezes no centro para a Terra e depois duas vezes para o Grande Espírito. Depois Jovem Urso escavou o solo e, com um bastão que havia purificado na fumaça e oferecido para as seis Direções, traçou uma linha que ia do Oeste até o centro, em seguida, outra do Leste ao centro e, por último, outra do Sul ao centro; depois ofereceu o bastão ao céu e tocou o centro, e à terra e tocou o centro.

Assim foi como se fez o altar; como já disse, temos fixado aqui o centro da terra, e este centro, que na realidade está em todas as partes, é a morada do Grande Espírito (4). Jovem Urso pegou então uma espiga de milho e cravou um bastão em um de seus extremos; e no outro colocou uma grande pena de águia. Este milho pertence na realidade aos arikara - disse Jovem Urso - e lhes será devolvido porque o amam como nós amamos a nosso Chanumpa. A espiga de milho que aqui vês têm doze significados importantes, porque está formada por doze fileiras de grãos, e os recebe dos diversos Poderes do Universo. Ao pensar nas diferentes coisas que o milho pode nos ensinar, não devemos esquecer, sobre tudo, a paz e o parentesco que estabelece entre nós. Devemos recordar, antes que nada, de que nossos parentes mais próximos são nosso Avô e Pai Wakan Tanka, nossa Avó e Mãe Terra, os quatro Poderes do Universo, os dias vermelho e azul (luz e escuridão), o Luzeiro da aurora, a Águia Pintada que guarda todo o que é sagrado no milho; nosso Chanumpa também é como um parente, porque protege a tribo, e através dele pedimos ao Grande Espírito.

O penacho que cresce na ponta da espiga de milho, e que temos assinalado com uma pena de águia, representa a presença do Grande Espírito; porque, igualmente ao pólem que se estende desde o penacho e dá a vida, assim a presencia do Grande Espírito dá a vida a todas as coisas. Esta pena que está sempre fixa na ponta da planta é o primeiro a ver a luz da aurora; vê também à noite, a lua e todas as estrelas, por todas estas razões é wakan - sagrado. E este bastãozinho que cravei na espiga de milho é a árvore da vida, que se estende desde a terra até o céu (5), e o fruto, que e a espiga com todos os seus grãos, representa ao povo e a todas as coisas do Universo. 
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(4) Esta definição é muito notável, porque contem a doutrina do altar primordial, do santuário como tal.

É necessário recordar destas coisas para poder compreender os ritos que vamos realizar. Jovem Urso apoiou então a espiga de milho no cavalete que estava montado perto do altar; este cavalete é uma imagem do secador onde se seca a carne de bisão; agora é o secador do milho, porque o milho é tão importante para os arikara como o bisão o é para os sioux. Jovem Urso arrancou uma espiga de seu talo, a estendeu ao representante da tribo dos arikara, e falou assim: É vontade de Wakan Tanka que este milho volte a vocês. Deste modo faremos a paz e estabeleceremos um parentesco que será um exemplo para todas as nações. Falamos a pouco dos Doze Poderes do Universo; uniremos estes doze Poderes, com os sioux e os arikara, em um só. Ao fazê-lo, os arikara deverão cantar sobre os sioux; eu representarei a meu povo, e vosso chefe representará ao vosso; nos converteremos em parentes, e por isso nossos dois povos serão como um só e viverão em paz. No passado, os homens que o Grande Espírito colocou nesta ilha6 têm sido inimigos, mas este ritual trará a paz, e no futuro outras nações desta ilha se aparentarão graças a ele. Vocês, arikara, devem fazer agora como se estivessem no caminho da guerra contra nós; devem se distanciar em busca do inimigo cantando seus cantos de guerra. Depois de ouvir estas palavras, o arikara pegou uma espiga de milho com a mão direita e o talo com a esquerda, e declarou que os homens de sua tribo buscavam ao inimigo, os Sioux; e, entoando seus cantos de guerra, agitaram os talos de milho. Este balanceio dos talos representa o milho quando o sopro do Grande Espírito o acaricia: quando sopra o vento, o polem cai do penacho a tela que rodeia a espiga, e isto é o que faz com que o fruto madureça e seja fértil. Podem ver como o exemplo do milho representa o parentesco que vamos estabelecer entre estes dois povos. Enquanto os mensageiros dos arikara simulavam buscar a seus inimigos, os sioux, todo mundo se juntou para observa-los, e todos eram felizes, porque compreendiam o que ia acontecer.
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(5) A analogia com o simbolismo cosmológico dos povos antigos mais diversos aparece aqui de um modo particularmente impressionante; nos limitaremos a recordar a este propósito ao fresno Ygdrasil, o centro do mundo na mitologia germânica.

Logo os arikara pararam frente o tipi onde esperavam os quatro sioux, e o chefe arikara disse a seus valentes: Quem de vocês foi o primeiro a tocar o inimigo (7) no caminho da guerra? Agora iremos contar os golpes sobre esta tenda e entrar nela para capturar Jovem Urso; depois faremos prisioneiros aos outros. Mas antes devem relatar os atos de bravura que realizaram no caminho da guerra. Então o arikara se pôs a contar suas façanhas guerreiras, e depois de cada frase todos os assistentes gritavam: Hi ho!Hi ho, e as mulheres mostraram seu júbilo lançando trêmulos. Quando terminou, se precipitou para a tenda, a tocou (contou golpe), depois entrou e saiu com jovem Urso; os demais arikara também entraram e tiraram aos outros quatro sioux. Os arikara continuaram cantando seus cantos de guerra, e todos os assistentes, sioux e arikara, estavam contentes e se trocavam presentes, alimentos ou roupas, ou até cavalos. Formou-se então um cortejo dirigido pelo arikara, que agitava continuamente os talos de milho atrás dele iam os quatro sioux capturados, entre os quais havia uma mulher, um menino e uma menina, a fim de que toda a tribo estivesse representada. Os arikara levavam as crianças sobre seus ombros, e acompanhando o cortejo iam os cantores, os tambores e todas as pessoas das duas tribos. O cortejo se deteve quatro vezes, e cada vez as pessoas uivavam igual aos coiotes, tal como fazem os grupos guerreiros quando regressam ao acampamento. Logo chegaram ao tipi sagrado que havia sido preparado no centro do acampamento (8), e os sioux capturados foram conduzidos para uns leitos localizados ao Oeste da tenda, sobre eles haviam sido amontoados muitos presentes oferecidos pelos arikara. Os ajudantes arikara pegaram então umas roupas de pele de bisão e os ergueram frente aos cinco sioux e o chefe arikara: isto se chama «esconder aos parentes próximos». Então um guerreiro arikara e uma mulher desta tribo deslizaram por detrás desta cortina e pintaram os rostos dos sioux.
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(6) O continente pele vermelha, a terra que se estende entre os dois oceanos. (7) É sabido que tocar ao inimigo armado, sem mata-lo, com uma vara adornada com plumas (coup-stick), era considerado como uma façanha particularmente meritória.

A mulher pintou de vermelho os rostos da mulher sioux e da menina, enquanto o guerreiro fez o mesmo com os homens sioux e o menino, pintando um círculo azul ao redor de seus rostos e uma linha azul na testa, na bochecha e também no queixo. Durante todo este tempo os arikara agitaram os talos de milho e cantaram cantos de mistério. Depois retiraram as penas de águia das espigas e as colocaram nos cabelos dos sioux; enquanto, pintavam de vermelho um crânio de bisão, e os quatro Poderes foram representados por quatro linhas; rechearam com salvia as órbitas e o nariz do crânio, e este foi colocado, de frente para o Leste, sobre um montinho cuja terra havia sido tirada do lugar consagrado. Então se separaram as roupas de bisão, de modo que todo mundo podia ver aos sioux com o rosto pintado. Talvez deva lhes explicar o que isto significa: mediante a pintura, os homens foram transformados; experimentaram um novo nascimento e adquiriram com ele novas responsabilidades, novas obrigações e um novo parentesco (9). Esta transformação é tão sagrada que deve ter lugar na escuridão (10): deve ser escondida da vista da maioria; mas quando se retira a cortina aparecem puros, livres de ignorância, e terão esquecido as inquietudes do passado. Agora não são mais que um com os arikara; o parentesco foi realizado (11). Enquanto agitavam seus talos de milho, os arikara entoaram este canto:

Todos estão aparentados (huntka),
Todos estes são parentes.
Depois, voltando-se para cada uma das quatro Direções, cantaram:
Ó Poder de onde o sol se põe,
Tu és um parente!
Ó Poder de onde vive o gigante,
Tu és um parente!
Ó Poder de onde sai o sol,
Tu és um parente!
Ó Poder dali onde sempre olhamos,
Tu és um parente!
Depois, olhando o céu, cantaram:
Este é nosso parente.
E se inclinando para a terna, e também sobre o crânio de bisão, cantaram:
A Terra é nosso parente.
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(8) Recordemos que os povoados índios estão dispostos em círculo. (9) Este papel da pintura ritual se encontra também no hinduismo; na maior parte das civilizações a pintura foi substituída pela indumentária, como no caso do vestido ocre do sannyâsî ou do hábito monacal. (10) Também esta obscuridade é simbólica: indica o passo mais ou menos «caótico» de um plano de consciência a outro. (11) Por transposição espiritual: o eu não é mais que um com o próximo. O simbolismo iniciatico desta passagem é particularmente explícito.

Finalmente, agitando o milho sobre os sioux, cantaram: Estes cinco são nossos parentes; todos estamos aparentados; todos somos um ! Em seguida, Jovem Urso se levantou, pegou o Chanumpa que estava apoiado no cavalete, se colocou no meio da tenda e, levantando sua mão direita e elevando o Chanumpa com a mão esquerda, rezou: Ó Wakan Tanka, elevo minha mão para Ti! Hoje está muito perto de nós. Te ofereço meu Chanumpa . Também a vocês, Poderes alados que habitam no lugar onde se põe o sol, vos oferecemos este Chanumpa. Neste dia Wakan unimos tudo o que há de sagrado no Universo; neste dia foi feita uma grande paz. Ó Avô Wakan Tanka, que esta paz dure sempre; que nenhum homem nem nenhuma circunstancia a destrua! Estes povos caminharão juntos por este caminho único que é vermelho e sagrado. Virando para as pessoas que assistiam, Jovem Urso disse: Os rituais chegaram ao fim; estamos unidos, somos um! Vocês, arikara, este milho que amam, mas que haviam perdido, vos será devolvido. Ao ouvir estas palavras, os homens mostraram júbilo e as mulheres fizeram o tremulo, e os cantos começaram de novo; os arikara que agitavam os talos de milho dançaram para a porta do Leste, e se precipitaram cinco vezes para os cinco sioux; depois estes movimentos e estas danças cessaram. Então se trouxe muita comida para a tenda; o chefe arikara, pegando um pedaço de carne seca e o purificou na fumaça de ervas aromáticas, rezou assim: Ó Wakan Tanka, Veja – me e tenha misericórdia de mim! Esta carne é a semente: deve ser introduzida em nossa boca e se converte em nosso corpo e nossa alma, que o Grande Espírito, em sua bondade, nos deu. Assim como Ele é misericordioso convosco, assim devem ser vocês com os demais.
Com estas palavras, o chefe arikara colocou a carne consagrada na boca de cada um dos quatro sioux; ele e Jovem Urso se sentaram um de frente ao outro no meio da tenda.

Jovem Urso tenha frente a si o crânio de bisão e o Chanumpa, e frente ao chefe dos arikara estava a espiga de milho e os quatro talos. O chefe arikara pegou então um pedaço de carne de bisão e depois de purificá-lo na fumaça, o estendeu para Jovem Urso e disse: How, filho meu! Vou ser teu pai. Neste dia que a Ele pertence, o Grande Espírito viu nossos rostos; a aurora deste dia nos viu, e nossa Avó a Terna nos escutou. Estamos no centro, e os quatro Poderes se unem em nós. Quero por esta carne em tua boca, e a partir deste dia jamais deverá temer a minha casa, porque minha casa é tua casa12 e você é meu filho. O chefe colocou a carne na boca de Jovem Urso; a tribo dos arikara se alegrou e agradeceu, porque, mediante este ato, os dois povos se convertiam em um só. Então Jovem Urso pegou igualmente um pedaço de carne, o purificou ma fumaça e, o ofereceu ao arikara, e disse: How, pai meu! Fizemos a paz segundo a vontade do Grande Espírito, não só entre nós, mas também dentro de nós e com todos os Poderes do Universo.

A aurora deste dia certamente nos viu, e o Bisão, que é a fonte de nossa vida nesta terra e que protege a tribo, esteve conosco; e nosso Chanumpa, que deu a nosso povo o alimento para suas almas, tem estado conosco; e tivemos conosco vosso milho, que é sagrado e com ele realizamos o parentesco. Quero por este alimento em tua boca para que nunca tema a minha casa, que será tua casa. Que, por fazer isto, Wakan Tanka seja misericordioso conosco! Jovem Urso colocou a carne na boca do chefe arikara, e todos os sioux deram mostras de júbilo e agradeceram. Em seguida, Jovem Urso pegou o Chanumpa, o acendeu, a ofereceu para as seis Direções, e depois de dar quatro baforadas a ofereceu ao arikara, dizendo: How, pai meu! Toma isto e fuma-o, e que em teu coração não haja mais que a verdade. O arikara pegou o Chanumpa, o ofereceu para as seis Direções, e depois de dar quatro baforadas, o passou aos assistentes. Todos os arikara e todos os sioux que se encontravam presentes o fumaram, e inclusive quando o fogo havia se apagado assim mesmo colocavam o Chanumpa na boca e o abraçavam. Enquanto isso, o chefe arikara disse a Jovem Urso: How, filho meu! Devolveu-nos a espiga de milho que o Grande Espírito nos deu, mas que você colheu por causa de uma visão que teve. Como queríamos que nos devolvesse nosso milho, viemos a propor a paz; mas nos deste mais que isto ao realizar hoje mesmo o mistério do parentesco.
Com o fim de nos ligar ainda mais intimamente, te dou uma parte do milho com o direito de empregá-lo em vossos ritos. Desde agora, também para vocês será sagrado, como o é para nós. O povo estava feliz ao ver que esta grande coisa se tinha cumprido, e fez uma festa que durou toda a noite. Desejo mencionar aqui que com estes ritos se estabeleceu uma tripla paz.
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(12) Se nota a curiosa coincidência com a fórmula de cortesia árabe: «Minha casa é tua casa» (dârî dârek).

A primeira paz é a mais importante: é a que surge na alma dos homens quando se dão conta de seu parentesco, de sua unidade, com o Universo e todos seus Poderes, e quando se dão conta de que no centro do Universo mora o Grande Espírito, e que na realidade este centro está em todas as partes; está em cada um de nós. Esta é a paz real; as outras pazes não são senão reflexos dela. A segunda paz á a que se estabelece entre dois indivíduos; a terceira é a que acontece entre nações. Mas devem compreender que nunca pode haver paz entre nações antes que se saiba e sinta que a verdadeira paz, como já disse, está na alma dos homens.

Fonte: Livro O CACHIMBO SAGRADO - OS SETE RITOS SECRETOS DOS ÍNDIOS SIOUX relatados por ALCE NEGRO